O Diabo Brasileiro
Como citado anteriormente, a grande maioria dos negros que
vieram na condição de escravos já possuíam o entendimento acerca da dualidade e
do embate existente entre ambas as forças, onde de um lado estava Deus e do
outro o Diabo. O que eles não imaginavam é que a pressão exercida pelos colonos
capturasse suas religiões nativas e as colocasse na mesma posição, ou seja, de
um lado Orixá e do outro Exu. Isso foi se entranhando de tal forma no Brasil
colônia que não existia mais uma identidade desprovida de influência.
"Exu, Bará ou Elegbará é um santo ou orixá que os
afro-baianos têm grande tendência a confundir com o diabo. Tenho ouvido mesmo
de negros africanos que todos os santos podem se servir de Exu para mandar
tentar ou perseguir a uma pessoa. Em uma altercação qualquer de negros, em que
quase sempre levantam uma celeuma enorme pelo motivo mais fútil, não é raro
entre nós ouvir-se gritar pelos mais prudentes: Fulano olha Exu! Precisamente
como diriam velhas beatas: Olha a tentação do demônio! No entanto, sou levado a
crer que esta identificação é apenas o produto de uma influência do ensino
católico.” (Raimundo Nina Rodrigues- O animismo fetichista dos negros baianos-
Rio de Janeiro -UFRJ/Biblioteca Nacional, 2006.).
Em contrapartida, os índios (que tiveram enorme contato com
a cultura cristita) também já haviam absorvido muitos conceitos. Como os
cristãos europeus entendiam que a única fé verdadeira era no seu Deus e seus
ídolos, tudo que fugia desse orbe era considerado maligno. De uma forma ou
outra, houve um embate, uma luta dos nativos que não aceitavam essa nova forma
de culto, esse novo Deus e os sacerdotes que apenas ilustravam a salvação da
alma e não curavam doenças e faziam outros sortilégios que os Pajés costumavam
fazer.
Como o homem europeu vivia a dicotomia entre o bem e no mal,
um dualismo resultante dos séculos de imposições cristitas, “transpirava” o
medo de ser influenciado pelas forças malignas que tanto embasavam em suas
pregações. Quando se viam diante a líderes tribais ferozes e contrários à
instalação de seus mitos em terra nativa, tornavam-se presa. O jogo psicológico
dos antigos foi o início da Tradição que veio se tornar a Quimbanda, ou seja, a
oposição usou da própria limitação cristita para programar o medo e a aversão.
Existiam índios revoltados que criavam núcleos de
resistência dentro das matas, longe do homem branco português, pintavam seus
corpos de vermelho (sementes de Urucum) ou preto (cinzas ou jemoúna), fumavam,
bebiam seus preparados e alguns comiam carne dos inimigos (principalmente os
Tupinambás). Morriam e não eram convertidos, defendiam seus espaços e suas
famílias, honravam seus Deuses e seus mortos. Erguiam 'totens' com crânios,
partes humanas e animais, impingiam medo nos seus perseguidores e propagavam
lendas que eram verdadeiros pesadelos. Por conhecerem a fé e os pontos fracos
de seus inimigos, usavam essa camuflagem para se proteger. Isso não impedia que
índios de outras tribos submissas à coroa não levassem os caçadores portugueses
a esses refúgios para matar e escravizar os rebeldes.
Os negros e os ameríndios fundiram suas culturas dentro de
um árduo processo, ora nas batalhas em que ficavam de lados opostos, ora nos
cativeiros em que eram mantidos como escravos. As culturas foram se moldando e,
mesmo com a enorme problemática de reconhecimento, a religião também. Contudo,
os povos acabaram se fundindo. Esse intercâmbio movimentou todo um novo
conhecimento acerca da fauna, flora, dos Deuses nativos, dos Deuses africanos e
de suas relações com os ícones cristãos. A Quimbanda Brasileira acredita que em
determinados momentos, os negros e os índios se associaram para promover as
fugas das senzalas, pois os índios eram profundos conhecedores das matas. Os
fugitivos corriam pela mata adentro para locais bem distantes dos centros onde
ocorria grande concentração de escravos e, após escolher um local apropriado e
protegido, fundavam vilarejos para abrigar os negros e índios rebeldes. Assim
como existiam índios que eram submissos e apontavam as localidades das tribos
rebeldes, índios e mestiços (descendentes de brancos e índios) faziam o papel
de algozes desses negros fugitivos.
Alguns vilarejos rebeldes, mais tarde denominados como
Quilombos, abrigavam não só negros e índios como também brancos fugitivos,
mulatos e cafuzos
(descendentes de índios e negros eram visto como 'escória
social pelos conservadores portugueses). A religião, dantes podada por colonos
e anteriormente pelos jesuítas volta existir, mas com algumas características
novas herdadas do sincretismo motivado pelo intenso processo de fusão cultural,
pois dentro de um mesmo espaço muitas vezes existiam descendentes de diversas
nações.
Dentro desse processo de fuga e criação dos quilombos, os
Kimbandas e outros sacerdotes e sacerdotisas afro exerceram um papel
fundamental, curavam os negros mutilados, doentes e em trabalho de parto, eram
conselheiros e mantinham a chama da fé acesa, lutavam contra os grilhões dos
senhores de engenho e procuravam facilitar a ida dos negros para os vilarejos
ocultos, muitas vezes usando seus poderes contra os capatazes que guardavam os
escravos. Dentro da Tradição Oral, é dito que esses Kimbandas faziam os guardas
dormirem e ofertavam à Pambu Njila cachaça e fumo para que abrisse os caminhos
para as fugas, protegendo os negros ao longo da jornada.
Certo, é que, todos os deuses africanos correlatos de Èsú
passaram pelo mesmo processo de demonização, entretanto, a figura “Diabo Exu”
também foi fruto de outros sincretismos. Dentro dessa massa formadora do “Diabo
Brasileiro” destacam-se os representantes das culturas africanas Bantu (Pambu
Njila, Aluvaiá, Mavile, dentre outros) e Fon (Elegbara), da cultura indígena os
Guarani (Kurupi – Deus da Sexualidade) e Tupi-Guaraní (Anhangá e Ticê – Deus e
Deusa das Trevas, Guandirô – Deus da Noite que bebia sangue, Pirarucú – Deus
maligno que mora no fundo dos rios, dentre outros), além de mitos e lendas que
se agregaram ao novo
Ser.
Como Èsú já havia atravessado a ‘Kalunga Grande sincretizado
com os demônios cristitas, em um novo território, cultuado com diferenças do
africanismo original, tornou-se um marcante instrumento usado pelos negros
africanos como forma de apavorar seus perseguidores. Da mesma forma que os índios
criavam 'totens' erguidos no meio da mata, os negros não tardaram a esculpir
novas imagens de Exu repletas de fundamentos diabólicos para agir da mesma
forma. Temos uma concepção particular que dentro desse novo conceito de Exu, os
Mulôjis (feiticeiros Kimbundos) e os Ndokis (feiticeiros Quicongos) tiveram uma
enorme influência. Não era apenas uma forma de assustar os inimigos, mas uma
nova descarga energética que gerava um Ser poderoso e maléfico, bom e protetor
para os seus, possuidor das raízes que se entrelaçaram em novas espécies
formando um novo jardim. Não tardou para a fama desse Ser se espalhar pelos
quatro pontos como forte aliado dos povos rebeldes.
O Brasil colônia, ao contrário do que a grande maioria foi
ensinada, não foi um território onde a Igreja Católica esteve tão presente,
principalmente nos dois primeiros séculos.
"...Distantes do reino, submetidos a uma vigilância
clerical realizada sem a mesma constância e intensidade daquela exercida na
metrópole, o catolicismo acabou no Brasil por ganhar novos contornos:
amenizadas as cobranças sobre os atos praticados, avançou na direção de um
diminuto apego às missas, de uma menor preocupação com o comportamento, e
também, do sincretismo.” (Angelo Adriano Faria de Assis – Doutor em História
pela UFF; Professor Adjunto II – UFV- Feiticeiras da Colônia. Magia e Práticas
de Feitiçaria na América - Mneme - Revista de Humanidades. UFRN)
A miscigenação racial também proporcionou a miscigenação
religiosa e naturalmente, através dos inúmeros sincretismos, a religião, bem
como a espiritualidade popularizou-se em muitos aspectos. Isso ocorreu em uma
sociedade em formação com constante movimento imigratório e emigratório. Essa
forma menos hostil de lidar com a fé e figuras sagradas fez com que muitos aspectos
do catolicismo fossem ‘maculados'.
Uma informação deveras importante é que os índios e os
negros no processo de vivência encontraram influências de outras tradições: A Pagã
e a Judaica. Muitos homens e mulheres condenados pelos Tribunais do Santo Ofício,
pela prática de bruxaria elou feitiçaria eram deportadas para a colônia
portuguesa como forma de exílio. Atracaram em terras brasileiras bruxos,
bruxas, feiticeiros e feiticeiras de Tradição Medieval, juntamente com muitos
neoconvertidos do judaísmo. Muitos neoconversos judaizavam ocultamente e
acabaram propagando sua religiosidade em terras coloniais. Esses fortes
elementos foram colocados na panela de Exu'.
As feiticeiras medievais muitas vezes eram adeptas de
correntes que usavam a corrupção dos elementos católicos para a realização de
seus intentos mágicos. Rezavam e praguejavam em nome da Cruz das Santas Almas,
bem como faziam feitiços de amarração e fidelidade. Esses feitiços tornaram-se
extremamente populares e requisitados, inclusive pelos senhores e senhoras
abastados da sociedade em formação.
As feiticeiras europeias tiveram grande contato com índios e
negros. Isso fez com que todo esse conhecimento fosse mesclado e, a partir
desse exato momento, Exu realmente recebesse o status de diabo com novo vigor.
"Filtros, mágicas, feitiçarias, simpatias, adivinhos,
beberagens, poções, rezas e orações também se imputavam poderes milagrosos.
Para o bem e para o mal, envolvendo acordos com deus e o diabo. Não eram raros
os oferecimentos e práticas mágicas para recuperar ou retirar a saúde de
alguém, trazer riquezas, gerar ruína, amaldiçoar casais ou pessoas, conquistar
e manter fiel o homem ou a mulher amada para toda a vida...”. (Angelo Adriano
Faria de Assis – Doutor em História pela UFF; Professor Adjunto II – UFV-
Feiticeiras da Colônia. Magia e Práticas de Feitiçaria na América - Mneme –
Revista de Humanidades. UFRN)
O medo da ascensão dos neoconversos e os relatos das
práticas pagãs, incluindo negros, índios e europeus, fizeram com que a
Metrópole enviasse ao Brasil colônia o "Malleus Maleficarum” e iniciasse
um processo de limpeza'. A partir desse ponto, toda e qualquer prática
religiosa não compreendida pelos ditames católicos era tida como diabólica.
"Perseguidos durante muito tempo, há poucos documentos
ou registros históricos sobre elas. E, entre esses, os mais frequentes são
produzidos pelos órgãos ou instituições que combateram essas religiões e as
apresentaram de forma preconceituosa ou pouco esclarecedora de suas reais
características. É O caso da visitação do Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição, nos quais estão registrados os processos de julgamento de muitos
adeptos dos cultos afrobrasileiros e que foram perseguidos sob a acusação de
praticarem 'bruxaria pela Igreja Católica Colonial.” Vagner Gonçalves da Silva
- Candomblé e Umbanda: Caminhos da Devoção Brasileira. - Editora Selo Negro -
2a Edição, 2005.
O tempo passou e ocorreu um endurecimento por parte dos
dominantes. Os feiticeiros(as), além de perseguidos pela Igreja, eram alvo da Lei.
Todos reconheciam o poder desses “Amantes do Diabo” e usaram métodos diversos
para cercear a apansão. Ciclicamente, mas de formas diversas, sempre ocorreu e
ocorrerá uma perseguição. Os verdadeiros feiticeiros guardam em si a arte da
camuflagem, pois necessitam se esconder sem deixar suas essências de lado. E a
lógica da feitiçaria de defesa.
Nossa gnose nos leva até esse ponto. Tudo que posteriormente
falaram de Quimbanda está intimamente conectado ao desenvolvimento da Umbanda
do Brasil. Isso já foge da nossa alçada e da nossa vontade, haja vista que não
existe relação alguma entre ambas.
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